Meu relato de “cara pintada”

Apesar de eu ser, há muitos anos, um militante virtual (entre tantas, tantas outras coisas), até ontem à tarde fazia 22 anos que eu não ia a uma passeata. A última passeata de que havia participado é bem famosa, no entanto. Deu-se no dia em que o Congresso votou o impeachment de Fernando Collor. Eu tinha 17 anos e estava na segunda série do segundo grau. Estudava no colégio Sigma, em Brasília.

No dia da passeata, estávamos em aula. Lembro que o professor anunciou que o colégio estava liberando os alunos que quisessem ir à manifestação. Como se tratava de uma oportunidade de matar aula, todo o mundo foi. Uma colega nossa desenhava caricaturas e tinha organizado uma vaquinha para fazer uma camiseta para o protesto. Talvez eu ainda a tenha, guardada em alguma gaveta na casa dos meus pais. Ela trazia uma caricatura do Collor atrás das grades e a palavra “Impeachment”.

Não me lembro de muita coisa, apenas de que eu não sabia nada sobre o assunto, além do fato de que Collor era um playboy bobão que gostava de se mostrar passeando de jet-ski para que os jornalistas o fotografassem, que a economia estava ruim como sempre e que “impeachment” era o jeito de expulsá-lo. Meus colegas provavelmente estavam na mesma situação, digamos, “intelectual”.

A passeata consistia basicamente de estudantes, que matavam aula alegremente naquele dia, dançando ao som de trios elétricos que tocavam música baiana. Que eu me lembre, pouquíssimos deles haviam jamais ido a uma passeata ou sequer pensado no assunto. A coisa toda estava mais é para um show. Eu mesmo, se não me falha a memória, paquerei umas garotas e dei uns beijos em alguma de quem não me lembro mais.

A passeata a que fui ontem aqui em Florianópolis foi completamente diferente. Havia muitos jovens, e até crianças, mas os adultos eram maioria e havia até muitos idosos, que resistiram bravamente ao pé d’água que caiu durante quase todo o percurso. Quando trovejava, a multidão vibrava, feliz de estar correndo risco de vida por seu país. O nível de conscientização era alto. Todos ali, ao menos no nível básico, sabiam muito bem o que estavam fazendo: protestando contra o PT. Não vi muitos grupos de adolescentes mais novos que não estivessem acompanhados de seus pais ou de um ou mais adultos. Essa é uma diferença marcante em relação à passeata de 1992. Naquele dia os adultos estavam trabalhando e não devia haver muitos deles na passeata.

Vi um sujeito dizendo que nessas passeatas de agora há muito mais ódio. Certamente que há! Como esperar ódio de jovens felizes que matavam aula dançando música baiana? Seria uma tolice! Aquilo era uma festa, e das boas. Não me consta que alguém ali tivesse dúvidas de que o Collor sairia da presidência, ou estivesse sequer muito preocupado com isso. As manifestações de 1992 eram só “para inglês ver”, como se diz. O processo de pressão política que resultou naquela votação do Congresso se dera em outros lugares e em outros momentos. Aquilo ali de que eu participei foi apenas uma festa de coroação.

O que ocorre hoje é o início de algo, não o seu fim. As pessoas estão com ódio de serem feitas de idiotas. Pouca gente sabe realmente o que está acontecendo, mas todo mundo está vendo que o PT está “brincando” com o Estado brasileiro. Nós que conhecemos bem o fenômeno – e o conhecemos graças UNICAMENTE ao professor Olavo de Carvalho – sabemos que não se trata de uma “brincadeira” irresponsável, mas sim de um projeto de socialização da América Latina, muito bem concatenado, e cuja aparência de leviandade deriva apenas da ignorância do assunto da parte de quem o julga, ou dos imprevistos que surgem no percurso dos acontecimentos – afinal, os petistas e seus companheiros estrangeiros, com exceção de uma pequena cúpula, não são menos burros e ignorantes que a média da população do nosso continente; e por isso, muito do que eles fazem dá errado até para eles mesmos, sobretudo a administração da economia, que se fosse feita corretamente, deixaria a população bem calminha e viabilizaria o financiamento de quantos portos cubanos o PT desejasse construir, de quanto países comunistas o governo brasileiro desejasse sustentar com o dinheiro roubado do povo.

Acredito até que a maioria das pessoas que engrossaram ontem as manifestações pelo país afora só enxerguem mesmo o seu próprio bolso, que anda mais vazio do que nunca. Não desprezo isso, contudo. Só não me iludo. Democracia é gritaria e, para gritar, é preciso quórum. Logo, quanto mais gente, melhor. Dane-se, se nem todos sabem o que está acontecendo. A maioria das pessoas nunca saberá. O mundo hoje é muito complexo e, para piorar, a mídia vende que ele é mais transparente do que nunca. A grande maioria das pessoas não têm disposição nem capacidade intelectual para compreendê-lo, muito menos o suficiente para votar conscientemente – e nem sequer sabem disso, pois se crêem muito informadas! A única salvação é que elas são manipuláveis. Sim! Existe uma manipulação do bem. E ouso dizer que este é o único caminho. A compreensão cidadã, o homem iluminado das democracias modernas, tudo isso não passa de uma ilusão. Isso nunca acontecerá.

Se me perguntassem hoje o que foi aquela passeata de 1992 em comparação com a de ontem, eu diria que a de ontem foi o início da superação de um estado de coisas que começou a se manifestar na de 1992. Não tenho esperanças a curto prazo, mas pelo menos agora dá pra ver uma luz no fim do túnel.

Pensando sobre rachaduras minutos antes de dormir

Como natural que sou de Brasília, devo confessar que uma das imagens que me formaram, que eu retive em mim, foi a da ruína. Trago na memória aqueles prédios vazios, aquelas construções abandonadas, o capim nascendo entre as rachaduras do concreto sujo de fuligem, as quadras esportivas sem pintura, repletas de trincados e habitadas por lagartixas a tomar sol. Desde muito cedo eu devo ter formado na mente e absorvido em minha personalidade essa idéia, tão próxima da melancolia, da tristeza e, por um outro caminho analógico, do estático, da apatia e da inatividade.

O curioso, porém, é que não sinto que esses símbolos tenham formado em mim somente caracteres negativos, pois hoje quando volto a Brasília, sinto saudades dos domingos em que eu andava de bicicleta pela cidade e tudo estava ermo. Parece que eles também geraram em minha personalidade uma inclinação para a contemplação, um bucolismo, uma sensibilidade poética e filosófica. Será que existe isso? Um bucolismo pós-industrial à la Mad Max? Deve existir. Vide o próprio filme, não é mesmo? Quero dizer, o estar só, o estar perdido no mundo, não é disso que vem a força do personagem de Mel Gibson? Ele parece ser uma espécie de estóico do asfalto. Decerto que lhe falta profundidade, mas a marca essencial, a inclinação, a predisposição e a sensibilidade estão lá.

Falta preencher tudo isso de conteúdo e de saber.